quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Um breve conceito e termo epifânico




O termo português epifania deriva do grego epiphaneia que significa ‘aparição’; no Novo Testamento este termo está presente, o encontramos, por exemplo, nesta passagem:
". Graça que nos foi dada em Cristo Jesus antes dos tempos dos séculos, e que é manifesta agora pela aparição (epiphaneia) de nosso Salvador Jesus Cristo" (2 Tim. 1:9,10).
Referia-se à chegada de um rei ou de um imperador. Tinha também o significado de "grande passo" para a notoriedade.
Com significado religioso, refere-se às manifestações de Deus na história do homem. No Antigo Testamento, é expressa pelo termo "teofania". No Novo Testamento, é usado para indicar as manifestações de Jesus em sua humanidade-divindade durante Seu batismo, nas núpcias de Caná e, especificamente nesta solenidade, aos Magos: "...eis que uns magos chegaram do Oriente a Jerusalém perguntando: onde está o rei dos judeus? Vimos sua estrela no Oriente... A estrela que tinham visto no Oriente ia à frente deles até parar sobre o lugar onde estava o menino... E entrando na casa, viram o menino com Maria, sua mãe, e, caindo por terra, o adoraram..." (Mt 2,1ss).
James Joyce apropriou-se do conceito de epifania e secularizou-o, dando-lhe uma conotação essencialmente literária que, entretanto se institucionalizou no vocabulário crítico. A definição joyceana é largamente conhecida e frequentemente citada, embora surja apenas em Stephen Hero (edição e introdução de Theodore Spencer, Jonathan Cape, London, 1948), uma primeira versão de A Portrait of the Artist as a Young Man que é consensualmente considerada de inferior qualidade, foi rejeitada pelos editores, e o próprio autor não quis, posteriormente, que fosse publicada. Joyce apresenta o conceito nos seguintes termos: “Por epifania ele referia-se a uma súbita manifestação espiritual, presente quer na banalidade da fala ou do gesto quer num estado memorável da própria mente. Na sua opinião, cabia ao homem de letras registrar estas epifanias com um cuidado extremo, visto tratarem-se dos mais delicados e evanescentes dos momentos(…)” [itálicos nossos] (188) Stephen Hero, o protagonista do romance com o mesmo nome, glosa e adapta nesta passagem o terceiro elemento da definição de beleza de S. Tomás de Aquino – claritas. Como ele próprio explica, atribui a este termo um significado metafórico, interpretando-o como quidditas – que traduz por “radiance”. Os primeiros dois elementos – integritas e consonantia - são traduzidos na obra acima referida por “integrity” e “symmetry” (idem, p.189), enquanto no Portrait, os termos preferidos por Joyce são “wholeness” e “harmony”. De qualquer forma, os seus significados não diferem grandemente: no primeiro momento, o objecto destaca-se, definindo inequivocamente as suas fronteiras com o vazio momentâneo que constitui o não-objecto; em seguida, as partes que o constituem são analisadas, sendo percepcionada a simetria que o compõe; finalmente, como resultado de uma clara apreensão da forma do objecto, é operada uma síntese: “a sua alma, a sua materialidade ou essência [whatness] é projectada para fora das vestes da sua aparência, na nossa direcção” (idem,190). É este então o momento da epifania.
Na epifania, pelo contrário, é o objecto ele próprio que é revelado. Dito isto, importa reter alguns pontos essenciais da argumentação de Langbaum: primeiro, que o dito “psicologismo” ou subjectividade dos românticos - herdado em parte pelos modernistas - não se opõe necessariamente a um confronto com o real, sendo a epifania um dos pontos de encontro; em segundo lugar, este conceito é um dos marcos na transformação da prosa que ocorreu a partir de finais do século XIX, e sobretudo no primeiro quartel do séc. XX – a procura sistemática de formas de organização alternativas à linearidade do enredo. Neste processo, a poesia foi uma das fontes de “inspiração”, o que levou a que se fale do género “romance lírico”.
Os modernistas se relacionam com o conceito de epifania. As narrativas teriam de ser flexíveis o suficiente para apreender as óbvias e constantes metamorfoses do real, mas procuravam também pontos de referência que servissem de contraponto a essa fluidez (e que, em última análise, tornam os romances “legíveis” de alguma forma). Por outras palavras, a “democratização” de que se falou não implica um tecido narrativo indiferenciado. Mesmo uma prosa em muitos aspectos tão oposta à de Joyce como o é a de Virginia Woolf, com uma ênfase notório na fluidez dos pontos de vista, apresenta sistematicamente pausas que funcionam quase como chaves de leitura: “iluminações, fósforos que se acendem inesperadamente no escuro” (To the Lighthouse, p. 176). A epifania é um instrumento de revelação, que suspende o devir e se destaca dele. O momento, ainda que efémero, é registado - prende a atenção - e dessa forma prolonga o seu significado, permeia o resto do texto e fornece nós privilegiados de significado ao leitor.



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