quarta-feira, 30 de junho de 2010

TENTAÇÃO - CLARICE LISPECTOR

Ela estava com soluço. E como se não bastasse a claridade das duas horas, ela era ruiva.
Na rua vazia as pedras vibravam de calor - a cabeça da menina flamejava. Sentada nos degraus de sua casa, ela suportava. Ninguém na rua, só uma pessoa esperando inutilmente no ponto do bonde. E como se não bastasse seu olhar submisso e paciente, o soluço a interrompia de momento a momento, abalando o queixo que se apoiava conformado na mão. Que fazer de uma menina ruiva com soluço? Olhamo-nos sem palavras, desalento contra desalento. Na rua deserta nenhum sinal de bonde. Numa terra de morenos, ser ruivo era uma revolta involuntária. Que importava se num dia futuro sua marca ia fazê-la erguer insolente uma cabeça de mulher? Por enquanto ela estava sentada num degrau faiscante da porta, às duas horas. O que a salvava era uma bolsa velha de senhora, com alça partida. Segurava-a com um amor conjugal já habituado, apertando-a contra os joelhos.
Foi quando se aproximou a sua outra metade neste mundo, um irmão em Grajaú. A possibilidade de comunicação surgiu no ângulo quente da esquina acompanhando uma senhora, e encarnada na figura de um cão. Era um basset lindo e miserável, doce sob a sua fatalidade. Era um basset ruivo.
Lá vinha ele trotando, à frente da sua dona, arrastando o seu comprimento. Desprevenido, acostumado, cachorro.
A menina abriu os olhos pasmados. Suavemente avisado, o cachorro estacou diante dela. Sua língua vibrava. Ambos se olhavam.
Entre tantos seres que estão prontos para se tornarem donos de outro ser, lá estava a menina que viera ao mundo para ter aquele cachorro. Ele fremia suavemente, sem latir. Ela olhava-o sob os cabelos, fascinada, séria. Quanto tempo se passava? Um grande soluço sacudiu-a desafinado. Ele nem sequer tremeu. Também ela passou por cima do soluço e continuou a fitá-lo. Os pêlos de ambos eram curtos, vermelhos.
Que foi que se disseram? Não se sabe. Sabe-se apenas que se comunicaram rapidamente, pois não havia tempo. Sabe-se também que sem falar eles se pediam. Pediam-se, com urgência, com encabulamento, surpreendidos.
No meio de tanta vaga impossibilidade e de tanto sol, ali estava a solução para a criança vermelha. E no meio de tantas ruas a serem trotadas, de tantos cães maiores, de tantos esgotos secos - lá estava uma menina, como se fora carne de sua ruiva carne. Eles se fitavam profundos, entregues, ausentes do Grajaú. Mais um instante e o suspenso sonho se quebraria, cedendo talvez à gravidade com que se pediam.
Mas ambos eram comprometidos.
Ela com sua infância impossível, o centro da inocência que só se abriria quando ela fosse uma mulher. Ele, com sua natureza aprisionada.
A dona esperava impaciente sob o guarda-sol. O basset ruivo afinal despregou-se da menina e saiu sonâmbulo. Ela ficou espantada, com o acontecimento nas mãos, numa mudez que nem pai nem mãe compreenderiam. Acompanhou-o com olhos pretos que mal acreditavam, debruçada sobre a bolsa e os joelhos, até vê-lo dobrar a outra esquina.
Mas ele foi mais forte que ela. Nem uma só vez olhou para trás.

Clarice Lispector. in "Felicidade Clandestina" - Ed. Rocco - Rio de Janeiro, 1998

1) O texto retrata uma situação especial vivida por uma menina.
a) O que a menina fazia sentada na porta de casa, às duas horas da tarde ?
b) Nos trechos “como se não bastasse a claridade das duas horas” e “a cabeça da menina flamejava”, a menina é associada ao sol ou à luz solar. Em que se baseia essa associação ?

2) Releia este trecho :

“Numa terra de morenos, ser ruivo era uma revolta involuntária. Que importava se num dia futuro sua marca ia fazê-la erguer insolente uma cabeça de mulher?”
Conforme o ponto de vista do narrador :

a) Como a menina provavelmente se sentia em relação a outras pessoas?

b)No futuro, o que a característica física da personagem poderia significar para ela?

3) O narrador, em certo momento, deixa transparecer sua participação na história narrada, embora num papel secundário.

a) Identifique no texto um trecho que evidencia a presença do narrador como personagem.

b) Levante hipóteses: O que o narrador fazia naquele lugar ?

c) A expressão “desalento contra desalento”traduz o estado de espírito do narrador e da menina. Levante hipóteses : Qual seria a razão desse desalento ?

4) A chegada de um cão basset provoca uma mudança na cena inicial.

a) Qual a reação da menina e do cão quando se vêem ? Justifique sua resposta com elementos do texto.

b) Qual o motivo dessa reação ?

c) Que palavras ou expressões do 7º parágrafo confirmam sua resposta anterior, sugerindo uma identificação total entre as duas personagens ?

5) Com base nos dois últimos parágrafos, responda :

a) O que o encontro representou para a menina ?

b) Que palavras dão a entender que a menina também exerceu uma forte atração no chão ?

c) A menina acompanha com o olhar a partida do cão. Por que, entretanto, ele não olha para trás ?

RESPOSTAS

1) a) Resposta pessoa. Sugestão – Ela olhava o movimento, ou tomava sol, ou esperava passar o soluço.
b)Nos cabelos ruivos da menina, que tornavam a cena ainda mais quente ou mais vermelha.
2) a) Provavelmente se sentia diferente, talvez até discriminada.
b) Poderia torná-la uma mulher especial, diferente, de uma beleza exótica.
3) a) Olham-nos sem palavras , desalento contra desalento.
b) Resposta pessoal. Provavelmente esperava o bonde, pois, na sequência do trecho do item a, ele diz. Na rua deserta nenhum sinal de bonde.
c) Resposta pessoal. No caso do narrador, talvez ele se sentisse assim porque o bonde demorava e o calor era insuportável; no caso da menina, talvez por ela ser a única ruiva “numa terra de morenos”, ou porque estivesse entediada, sozinha, sem nada de interessante para fazer, ou por causa do calor e do soluço.
4) A menina ficou “pasmada”, e o cachorro ficou surpreso, pois “sua língua vibrava” e ele tremia.
b) Pela perspectiva do texto, o fato de ambos serem ruivos.
c) O emprego da palavra pêlos na frase “ os pêlos de ambos eram curtos, vermelhos”, já que , no caso da menina, o normal seria o narrador referir-se aos cabelos dela.
5) a) A menina percebeu que não é o único ser ruivo no mundo, que há outros seres como ela.
b) AS palavras despregou-se e sonâmbulo.
c) Porque ele é um cachorro, e o comportamento normal de um cachorro é não olhar para trás.

9 comentários:

  1. Respostas
    1. é sério que vc vem na página dos outros e fala lixo? se não gostou do conteúdo problema é seu, devia respeitar as pessoas que gastam o tempo delas criando páginas educativas pra tentar colocar alguma coisa na cabeça vazia de pessoas como vc

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    2. é verdade com cordo com vc

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  2. eu queria que as perguntas fossem ate a 17 com respostas todas!

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  3. mds nunca vou conseguir interpretar esse tipo de texto,só sei interpretar pra tirar respostas do texto e escrever igual está no texto,agora esse tipo de texto que tem que adivinhar o que a pessoa está pensando,não sou Charles Xavier não eu não leio mentes

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  4. Meus parabéns, a tempo não via respostas tão bem feitas e com tanto carinho, merece muito pela dedicação.

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  5. Muito obrigada pelas respostas realmente foram ótimas

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